"A
Bíblia é fonte de ensinamento moral, mas é um erro procurar nela
exemplos de escolhas políticas às quais se referir". A essa conclusão
chegou o sociólogo e cientista político da
Universidade de Princeton Michael Walzer, de origem judaica, voz de autoridade da esquerda norte-americana, no seu novo livro
In God’s Shadow (À sombra de Deus), publicada pela Yale University Press.
A reportagem é de
Maurizio Molinari, publicada no jornal
La Stampa, 10-09-2012. A tradução é de
Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Por que você decidiu se ocupar desse assunto?
Eu
trabalhava sobre esse há 20 anos, aplicando à Bíblia a "teoria da
recepção" alemã, ou seja, para compreender como o texto foi interpretado
ao longo dos séculos. É um esforço para chegar a definir o que os
autores da Bíblia pensavam sobre a política.
Você se
detém na contraposição entre os dois pactos, de Abraão e do Sinai, e os
três códigos de Levítico, Deuteronômio e Êxodo, falando de "respeito
pelos atritos". É a base do pluralismo?
Os dois pactos estão em competição. Pensemos nas conversões. Para o pacto do
Sinai,
aderir é possível porque basta aceitá-lo, enquanto o pacto familiar de
Abraão o oposto é verdadeiro. Essa tensão se encontra novamente ao longo
de toda a história judaica.
E os três códigos?
Eles
têm uma identidade separada, mas são todos expressão de Deus, e,
portanto, é impossível conciliá-los. Isso explica porque os reis não
legislam, e é aí que se encontra a gênese do pluralismo que permeia todo
o mundo judeu.
Por que no capítulo sobre a "guerra santa" você cita Rousseau, segundo o qual "quanto mais forte é a união, maior é o inimigo"?
As regras da guerra, como aniquilar os cananeus, estão no
Deuteronômio,
ou seja, o livro mais comunitário que contém as normas detalhadas sobre
a preocupação mútua. Portanto, há uma estranha conexão entre a máxima
atenção pela coesão interna e a maior hostilidade para com o outro.
Por que você descreve os reis como uma "resposta à teocracia"?
Os reis são uma rejeição do governo divino. Há uma contraposição entre o reino do soberano e o de Deus.
Por que os profetas não se tornam líderes políticos?
Eles
nunca formaram um movimento. Algo do tipo começa somente em Roma, com
os movimentos plebeus. Os profetas são críticos morais, até mesmo
poderosos, mas que não têm seguidores. Criticam o rei, a oligarquia e
quaisquer outros. A profecia é vocação moral, embora tenha consequências
políticas.
Os autores da Bíblia não deram importância à
política como modo de vida, mas a situação mudou com a deportação para a
Babilônia. A descoberta da política ocorre na Diáspora?
Na
Babilônia,
os rabinos substituem os reis. Não há grande interesse pela política
entendida como definição na assembleia das responsabilidades dos
cidadãos. Tudo isso nasce com os gregos. Para os judeus, a legislação na
Babilônia refere-se à interpretação dos textos. Há mais interpretação
do que representação, porque a origem da lei é Deus.
Quais foram as consequências dessas premissas bíblicas sobre a formação do Estado de Israel?
O
sionismo é a negação do exílio, e, como o judaísmo era uma fé do
exílio, tratou-se da negação do judaísmo, zerando 2.000 terríveis anos
para voltar às raízes da Bíblia. Por isso, nas origens do sionismo está o
compromisso de estudar a Bíblia ou matérias como a arqueologia. Mas a
forma do Estado, ao invés, é uma imitação das democracias europeias.
Por que durante a Diáspora os judeus "imaginaram voltar a Israel liderados por reis e não por profetas"?
Ao longo dos séculos, a expectativa é pelo rei-messias.
Nissim Gerondi, que viveu na
Espanha nos
séculos XIII-XIV, afirma que o rei foi criado porque a lei é perfeita
demais para a população, e, portanto, é preciso um rei para violá-la,
para torná-la acessível aos indivíduos, em situações de crise ou de
emergência. É um texto maquiavélico cerca de 200 anos antes de
Maquiavel:
ele explica por que a monarquia continua sendo o regime político
preferido até que, no século XIX, os judeus iluminados optariam pela
democracia moderna. Por isso, o sionismo foi uma doutrina
revolucionária. Ele não previa a restauração dos reis.
Por
que você volta frequentemente à citação de Ben Sira sobre o fato de que
"um homem sábio é aquele que é cauteloso sobre tudo"?
Ben Sira representa a continuação da Bíblia, depois dos
Provérbios.
Ele se detém em fazer o bem na vida privada, enquanto no Livro dos
Provérbios há muito sobre fazer o bem na vida pública e em particular
sobre a ideia de prudência conectada à sabedoria. É a ligação entre a
Bíblia e o que se seguiu.
Quais são as lições que os líderes políticos contemporâneos podem extrair dessa análise da Bíblia judaica?
Não
procurar no texto da Bíblia indicações precisas sobre os comportamentos
a se ter na vida pública, porque seriam quase certamente errados. Na
Bíblia, ao contrário, há o aspecto moral do ensinamento: a busca da
justiça, a atenção pelos necessitados. E isso explica porque um
movimento pela justiça, como o de
Martin Luther King, pode invocar a advertência bíblica de que todos os seres humanos foram criados iguais.
FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/513461-o-deus-da-biblia-nao-faz-politica