sexta-feira, 18 de junho de 2010

Pensar, pensar - por José Saramago

Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma.

Revista do Expresso, Portugal (entrevista), 11 de Outubro de 2008
Fonte:

domingo, 13 de junho de 2010

Existencialismo de Tio Bicho – autenticidade e inautenticidade

Revisistanto um texto do período em que estava na universidade, escrito para a disciplina de psicologia, recordei as elucubrações de um filósofo da existência, autodidata por definição e sujeito de pensamento autônomo. Trata-se do personagem Tio Bicho, criado por Érico Veríssimo e presente na trilogia “O tempo e o vento”. Segue um panorama do diálogo entre os personagens Floriano e Tio Bicho, no capítulo “Reunião de Família”, do volume “O arquipélago”.


Floriano acompanhando Tio Bicho numa caminhada noturna, começa a teorizar sobre a existência de dois seres: o bom e o mau. “Bom” é o ser símbolo da retidão de caráter, da austeridade. “Mau” é o sensual, empulhador, safado. O “bom” é enxotado e o “mau” permanece livre e é o que, ao final, acaba virando herói.

Tio Bicho, de alguma maneira, começa a seguir a filosofia de Descartes, questionando a liberdade e fazendo perguntas a Floriano e a si mesmo como reflexão, e não esperando naquele momento uma resposta. Floriano sente-se livre de compromissos políticos e vive tentando convencer-se de que é livre dos preconceitos e atitudes da sociedade burguesa. Ele se comunica apenas tecnicamente com outros seres humanos. Vive um eterno negar-se, esquivar-se.

Mais adiante, ao contar que Santo Tomás de Aquino chorava ao contemplar o mistério do Ser, Tio Bicho afirma que também chora muito e Floriano confessa que foge dessa ideia de enfrentar a vida.

Tio Bicho explica que o homem que tem consciência de sua existência e aceita essa responsabilidade é o ser autêntico. O ser inautêntico é aquele que vive subordinado aos outros, governado pela opinião pública. Tio Bicho explica que amadurecer é aceitar sem alarme nem desespero essas contradições, estas condições de discórdias que nascem do mero fato de estarmos vivos.

Floriano sempre viu no pai, Rodrigo Cambará, o anti-herói. O pai bebia, jogava, fumava e traia sua mãe, Flora, com as empregadas da casa. As atitudes de Rodrigo causavam muito sofrimento em Flora, mas ela herda certo conformismo materno e não considera a possibilidade de que pode mudar as atitudes de Rodrigo.

Isso leva Floriano a decidir não causar desgosto à sua mãe e posiciona-se 'anti-Rodrigo Cambará'. Ele jamais faria o que o pai faz; tudo para compensar as decepções de sua mãe.

Porém, ao mesmo tempo em que sentia essa repulsa contra Rodrigo porque fazia Flora sofrer, Floriano sentia também um fascínio inexplicável pela figura paterna. O perfume do pai causava-lhe sentimentos de aversão e atração. Rodrigo também representava a virilidade masculina reforçada por uma imagem forjada a partir das histórias contadas pelos moradores da região.

Para ilustrar, Floriano conta a Tio Bicho uma experiência que teve na época de escola quando apanhou de um menino e, ao invés de defendê-lo, Rodrigo o fez enfrentar a situação sozinho, além de cobrar dele a honra que perderá na ocasião.

Floriano Cambará foi iniciado sob a chamada “ética do sobrado”. Ética que pregava a estabilidade familiar, a manutenção da moral e dos bons costumes, das regras e princípios religiosos. A Dinda representava com clareza essa postura. Ela foi quem norteou a vida de Floriano e os costumes de sobrado foram responsáveis pelo julgamento severo que Floriano fez por muito tempo sobre as atitudes de seu pai.

A família de Floriano um dia mudou-se para o Rio de Janeiro e a ética do sobrado chocou-se com a nova forma de vida encontrada na cidade. A chamada “ética de Copacabana” pregava a vida fácil, em que dias eram reservados ao desfrute da praia e a noite, aos prazeres e divertimentos. Floriano confundia-se: o que a nova cidade lhe reservava e a vida que outrora aprendeu.

Foi nesse período de transição que a família começou a se desestruturar de fato. A corrupção moral do pai, acentuada com a chegada ao Rio, fraudes políticas e os casos extraconjugais; os irmãos renegando os princípios do sobrado e procurando uma forma de vida nova, não mais baseada na “ética do sobrado”, sem qualquer preocupação com a família. Foi também nesse momento que teve início a diluição do casamento de seus pais.

Por fim, Floriano questiona-se sobre sua verdadeira liberdade. Ele sabe que não tem uma vida autêntica. Não se livrou ainda do cordão umbilical que o prende ao pai, embora use como argumento contra Rodrigo o discurso do sobrado do qual tenta se livrar. Sabe que a liberdade existirá plenamente quando disser tudo o que pensa ao pai. Quando encarar o problema, quando se livrar da sombra que o persegue. Assim tornar-se-á seu próprio pai.